Juliana Monachesi
Querida llka,
Nesta sexta-feira, 13, de inverno severo aqui em São Paulo, vejo no Instagram que o Manga foi ver a exposição antes de todo mundo! Penso na beleza dos acasos (que de "acaso" não têm nada), primeiro o do encontro de vocês na Rua Tinhorão; da convivência entre vizinhos, das conversas com ele sobre as quais me falou; do final de tarde em que o viu desagasalhado (nesse frio!) e perguntou se ele precisava de um casaco, ao que o Manga respondeu citando Adoniran Barbosa: "Deus dá o frio conforme o cobertor"; e do seu pedido a ele para fazer algumas fotos para que pudesse retratar o novo amigo em uma de suas pinturas; e finalmente essa visita, no preview da RUA13, que resultou muito mais exclusivo do que aquelas pré-aberturas VIP apinhadas de "gente importante". A pintura que ganhou o nome de Manga é a mais recente de toda a exposição, e foi a derradeira a entrar em cena, ainda terminando de secar, lembra?
Penso na poesia do gesto que o modelo fez ao posar para a foto, jogando os braços para trás, como que prestes a levantar voo. Nada disso é por acaso. A pintura evoca toda aquela série que você expôs em Araçatuba de personagens que frequentavam a missa e dos quais você fez grandes retratos, intitulando a série “Santos Descobertos”. Lembro de um domingo na RUA13 em que nos contou que esse título tem relação com o ambiente pesado das esculturas cobertas com panos roxos na igreja durante a quaresma, uma visão que entristecia você, até se dar conta de que santos mesmo não eram aquelas imagens esculpidas debaixo do pano roxo, mas sim as pessoas fragilizadas por problemas de saúde ou dificuldades financeiras que acorriam à missa em busca de algum tipo de milagre. Santos são as almas oprimidas pela precariedade da vida e invisibilizadas socialmente, deixadas à margem, esquecidas. Santo é o Manga anunciando seu voo, como se fora um anjo.
Vejo na mostra de abertura da RUA13 essa sua inquietação e rebeldia com a falência do projeto moderno que prometera liberdade, igualdade e fraternidade. É parte do que move as suas criações: descobrir as mazelas do mundo, baixar os panos que provocam essa cegueira geral, descascar o verniz que esconde a ruína de "eras douradas" que só reluziam à custa do sofrimento de alguém nos bastidores, descortinar as dores confinadas em nome de algum valor absolutamente falso e manipulador que justificou que se erigisse essa "civilização" onde vivemos. E que ela fosse erguida sobre a aniquilação das anteriores. Muitas camadas de história, da grande História da humanidade, assim como da pequena história das vidas humanas que orbitam o espaço onde seu olhar e sua sensibilidade alcançam, a começar da sua própria, estão vivas e pulsantes nas obras expostas. O tríptico que está do lado direito de “Manga” (2021), “Fragmentos”, acompanhado do “Mestre Oriental” (da série Guardião), ambos 2021 (o tríptico e a escultura em bronze) e de outras duas obras, “Expulsão do Paraíso” (2019), em mármore resinado, e “Torso” (2019), feito de gesso, formam um políptico criado especialmente para a exposição, que eu considero uma síntese da sua trajetória artística: ali estão reunidos diferentes suportes e linguagens, temas e interesses, apresentando a abrangência de sua pesquisa e, sobretudo, mostrando a liberdade com que você transita entre tudo o que diz respeito à arte. Admiro sua coragem de não se prender a um estilo ou uma única linguagem, e vejo nesse conjunto a comprovação estética de que você tem uma coerência maravilhosa entre a escultura em gesso e a gestualidade de partes da pintura, ou entre a quebra da sisudez do bronze pela adição de "ranhuras", desenhadas para representar o manto do guardião, e os elementos riscados na tela. Ou, ainda, entre a representação muito particular que você criou da expulsão do paraíso e as ruínas a do mundo que deixamos para trás desde o advento da pandemia.As escadarias que já não levam a lugar algum, os ladrilhos e azulejos majestosos,n abraçadeira suntuosa das cortinas: sua forma elegante de mostrar que fomos todos expulsos da ilusão de que habitávamos o paraíso.
O mundo mudou. E toda vez que vou visitar a RUA13 me sinto transportada para um outro lugar, um lugar que estou começando a conhecer, a tatear, onde intuo que as coisas se passam e se transformam num outro ritmo, um ambiente abraçado de energias renovadoras, de inspiração, de enlevo e graça. Seria um espaço que nasceu pensado para o mundo que já mudou? Não sei responder, mas posso aqui nessa carta que escrevo para você nesta sexta-feira, 13, ousar um palpite: acho que a RUA13 é um lugar que existe para nos preparar para o novo mundo. Porque as obras expostas nessa linda mostra de abertura nos fazem pensar na condição humana, nos sugerem olhar ao redor e prestar mais atenção à silenciosa mudança que está em processo todos os dias, toda hora, a todo microssegundo. Agradeço muito a você pela oportunidade que me ofereceu de acompanhar de perto todo esse processo de transmutação dessa casa em RUA13, desde maio até agora, às vésperas da inauguração, quando, a todo momento ao seu lado, aprendo algo novo. Uma honra para mim fazer parte agora dessa história, que, na verdade, está só começando!
Até domingo!
Com amor,
Juliana